Alguns versos do Katha Upanishad - I

Parte 1

Capítulo 2

 

Comentários de Swami Lokeswarananda (*)

 

1.      O que é bom e o que é prazeroso são duas coisas diferentes. Servem a diferentes propósitos. Cada um deles é, contudo, uma amarra, uma corrente, apesar de que não no mesmo sentido. Aquele que escolhe o que é bom faz o bem a si mesmo, mas aquele que escolhe o prazeroso perde o propósito da vida.

           

             Qual é o propósito da vida? O propósito da vida é a liberação. Estamos agora presos em um ciclo de nascimento e morte. Nós nascemos repetidas vezes e também morremos repetidas vezes. Por quê? Por causa de nossa ignorância. Nós não conhecemos nossa real identidade, e assim temos constantemente um sentimento de carência. Queremos sempre uma coisa ou outra. Talvez nós já tenhamos o suficiente, mas não estamos satisfeitos; queremos mais. E não importa quanto nós tenhamos, ainda continuamos desejando mais. Nunca estamos felizes. Mas para ter nossos desejos satisfeitos, precisamos ter um corpo e ter um corpo significa nascer. Então novamente, como a noite segue o dia, a morte segue o nascimento. Assim obrigatoriamente nos mantemos passando por nascimento e morte até que realizemos que nosso Ser é tudo e não temos nada que desejar. A liberação acontece quando conhecemos nosso Ser. A meta da vida é este Autoconhecimento. Este é o supremo bem (purusārthah) para os seres humanos. É a isto que Yama 1 se refere como o bem (śreyah).

            Existem algumas pessoas que não querem nada alem do Autoconhecimento. Eles não estão interessados no que Yama chama de preyah, o prazeroso. Eles são pessoas inteligentes, que pensam com profundidade e que se afastam do que é prazeroso porque sabem que estas coisas existem somente por um curto período. Seu único pensamento é como conseguir o supremo bem. Esta preocupação também é uma amarra, mas que ao final libera o ser. O caminho é difícil, mas eles o preferem para conseguir a verdadeira felicidade que todos querem – a felicidade que é eterna.

    O outro grupo de pessoas são aquelas que preferem o prazeroso. Tais pessoas são atraídas facilmente pelos prazeres sensórios. Elas se tornam felizes, mas somente por um período curto. As coisas que eles buscam são efêmeras.

    Naciketā 2 pertence ao primeiro grupo, mesmo assim Yama o adverte, pois ninguém pode estar seguro de não sucumbir à tentação. ‘Eterna vigilância é o único preço da liberdade. ’

 

2.      O que é bom e o que é prazeroso, ambos estão à disposição do homem. Uma pessoa sábia prefere o que é bom após examinar cuidadosamente os dois e avaliar seus méritos e deméritos. Uma pessoa de visão curta, contudo, prefere o prazeroso, pois está apenas interessada no aumento e na preservação de seus confortos físicos.

 

    A diferença entre as duas categorias de pessoas mencionadas antes é explicada mais ainda. Uma categoria prefere o crescimento moral e espiritual – śreyas, o bem. É chamado ‘o bem’ porque não há dúvida de que é definitivamente o bem. O caminho do bem não é nada fácil. É cheio de riscos e é muito duro. Mas as pessoas que discriminam preferem este caminho, pois ele é recompensador ao final. É o caminho que leva à perfeição moral, e nada é maior do que isso. Nenhum preço é muito elevado para se pagar pela perfeição moral.

    O outro grupo de pessoas está mais contente com o prazer dos sentidos – aquilo que é imediato e mais atrativo para eles. O prazer sensório é imediato; a perfeição moral é remota. Eles não podem esperar pelo remoto, e eles também não estão certos de que o remoto realmente existe e que é o bem. Por isso, eles correm para desfrutar dos prazeres sensórios, que são imediatos e palpáveis.

    As duas categorias são claramente distintas. Poucos estão na primeira categoria, mas eles são as pessoas que conduzem a humanidade. Sua influencia é sentida mesmo depois de séculos após suas mortes. Muitos estão no segundo grupo, mas eles são como bolhas no mar. Dificilmente são lembrados após suas mortes.

 

3.      Ó Naciketā, eu o tentei repetidas vezes, mas você rejeitou tudo que lhe ofereci. 3  Você não foi tentado com pessoas queridas e próximas, nem com coisas prazerosas. Você foi inteligente o suficiente para compreender que todas as coisas do mundo são inúteis. Você as rejeitou totalmente. A maioria das pessoas, contudo, estão envolvidas na vida mundana, pois eles a acham prazerosa.

 

    Sah tvam, - esta expressão é um tributo à Naciketā. Yama quer dizer: ‘Que pessoa maravilhosa você é! Eu busquei tentá-lo de todas as maneiras, mas falhei. ’ Yama ofereceu à Naciketā tudo que as pessoas mundanas correm para conseguir, mas Naciketā não hesitou em rejeitá-las. O que é bom e o que prazeroso não podem andar juntos. Se você quiser progresso moral e espiritual, você terá que abandonar os prazeres dos sentidos. Terá que praticar autodisciplina. Um ser humano tem uma fraqueza natural pelas coisas que agradam seu corpo e sua mente – comida, bebida, roupas; nome, fama e poder; amigos e parentes; objetos de desejo – em resumo, tudo que satisfaz seu ego.         Seu mundo é definido pelo seu corpo e mente e ele não consegue pensar que está fora disto. Mas há exceções – Naciketā, por exemplo. Estas pessoas têm uma aversão natural pelos prazeres físicos grosseiros. Eles não os desejam, pois tais prazeres são de curta duração. Eles preferem a riqueza moral e espiritual, pois é duradoura. De uma maneira ou outra sabem que a riqueza moral e espiritual é superior à riqueza material, e que para conseguir a primeira deve abandonar a última. Assim ele renuncia com satisfação aos prazeres efêmeros. Renúncia é abandonar as coisas pequenas por causa de coisas elevadas.

 

 

4.      A sabedoria secular e a sabedoria espiritual são pólos opostos. São diferentes e tem diferentes propósitos. Isto é bem conhecido. Naciketā, eu descobri que sua intenção é obter a sabedoria espiritual. Eu lhe tentei oferecendo a você todos os tipos de objetos atrativos, mas você não mostrou o menor interesse por eles.

 

    Literalmente, vidyā significa conhecimento e avidyā significa ignorância. E conhecimento aqui significa Autoconhecimento – aquele conhecimento que leva à perfeição, que libera uma pessoa e que também dá a ela paz e felicidade, o supremo bem. Você consegue este conhecimento praticando discernimento e autocontrole. Mas avidyā é exatamente o oposto. Você não usa o discernimento, você não tem autocontrole e corre atrás dos prazeres sensórios, sempre comandado pelos desejos. Você pode ser um erudito, mas sua erudição é apenas para o prazer. Você não tem sabedoria.

    Yama está novamente elogiando Naciketā. Isto é apenas para enfatizar a importância da renúncia. O que Yama diz é que você não pode adorar à Deus e Mammon ao mesmo tempo. Se você quiser prazeres sensórios, você não pode ter a felicidade que a comunhão com Deus dá. Felicidade espiritual e felicidade física são duas coisas diferentes. Se você quer uma, terá que renunciar à outra. Se você quiser dinheiro, nome, fama, confortos, poder político, um alto padrão social e coisas deste tipo, significa que você não está interessado na felicidade pura da companhia de Deus. Você está seguindo avidyā, o caminho do gozo. Vidyā, o caminho da renúncia, é muito difícil e ele não agrada a você. É possível algum compromisso? Sim, é possível se você sentir que qualquer coisa que você tem é para Deus – isto é, se você sentir que não é o mestre, que só Deus é o mestre. O desapego é a característica principal desta atitude. E desapego é apenas outro nome da renúncia, que Yama está elogiando neste verso.

 

 

5.      Aqueles que estão mergulhados no prazer mundano pensam que são inteligentes e que conhecem as escrituras bem. Eles são como cegos sendo conduzidos por outros cegos. Eles dão voltas e voltas, sempre perseguidos pelo sofrimento.

 

    Aqui o sofrimento das pessoas mundanas está sendo descrito. Tais pessoas seguem o caminho de avidyā, já descrito anteriormente como o caminho prazeroso (oposto ao caminho do que é bom). Eles sempre pensam em termos do prazer sensório e estão ocupados com suas posses materiais, como se isto fosse toda sua vida. Eles são tolos, mas pensam que são muito espertos. Eles são ignorantes, mas pensam que são sábios e que conhecem as escrituras. De fato eles tateiam na escuridão – como pessoas cegas conduzidas por outros cegos. Como eles sofrem! Morte, doença, pobreza, sofrimento – tudo isto os perseguem a cada passo. Sua jornada através do mundo é cheia de perigos. A ironia é que ainda assim eles o preferem.

 

6.      Existem seres neste mundo muito apegados às suas famílias. Eles podem também ser muito orgulhosos de sua riqueza. O mundo os hipnotiza e eles se tornam infantis. Eles pensam que o mundo que vêem ao seu redor é o único mundo que existe, eles não acreditam que exista qualquer outro mundo. Por isso nunca lhes ocorre que deveriam executar deveres preparatórios para a sua jornada ao próximo mundo. Tais pessoas vêm sob meu controle repetidas vezes.

 

    Algumas pessoas mundanas nunca pensam em sua vida após a morte. Eles podem até nem acreditar que existe tal coisa, e por isso não fazem nenhuma preparação para isto. Eles só estão preocupados com o que está presente. É o mundo que eles vêem, sentem e vivem que importa, e como eles não vêem qualquer outro mundo, ele não existe e eles não se preocupam com ele. Eles têm filhos, eles têm dinheiro. Eles têm muitas coisas para desfrutar e eles são felizes. O mundo os enfeitiçou tanto que eles se tornaram incapazes de raciocinar e infantis.

     Eles não reconhecem que a vida tem um propósito, que é atingir o Autoconhecimento. Somente um ser humano pode atingir o Autoconhecimento, pois ele pode pensar, argumentar e discernir, e pode rejeitar o que é prazeroso por causa do que é bom. Se ele não tentar atingir o Autoconhecimento, sua vida será em vão. Vivendo apenas para o prazer dos sentidos, ele comete suicídio. Ele nascerá repetidas vezes e estará completamente à mercê de Yama. Uma pessoa que raciocina sempre mantém a meta da vida à vista – atingir o Autoconhecimento. Tudo que faz está dirigido a esta meta. Se uma pessoa não direcionar sua vida desta maneira, estará sendo tolo e imaturo.

 

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 1 A divindade da Morte.

2 O jovem que deseja ser instruído por Yama sobre o Supremo Conhecimento.

3 No Primeiro Capítulo deste Upanishad estão descritas as tentativas de Yama em testar Naciketā, oferecendo-lhe  objetos transitórios.

* Swami Lokeswarananda (1909-1999), foi secretário do Ramakrishna Mission's Institute of Culture

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